domingo, 16 de janeiro de 2011

A Arte de Furtar


RO N A L D O VA I N FA S
A Arte de Furtar
Livro escrito no século XVII mostra que no Brasil Colônia os desvios faziam parte da
norma
Não RESTA DÚVIDA DE QUE A CORRUPÇÃO endêmica marca o Estado brasileiro
deita raízes em nosso passado colonial. Mas, naquele tempo, o que e chamamos de peculato - apropriação de dinheiro público em proveito próprio - não chegava a ser uma
irregularidade. Pelo contrário, era coisa institucionalizada e derivava do que o historiador e cientista político Raymundo Faoro (1925-2003) chamou de Estado patrimonial, no qual as esferas pública e privada se confundem.
Era comum a Coroa arrendar a particulares o direito de cobrar impostos, assim como o
direito de explorar produtos monopolizados pelo Estado. O regime de capitanias
hereditárias foi um modelo desse esquema, no qual os donatários eram oficiais do rei
recompensados com privilégios particulares,incluindo terras e parte da receita fiscal
devido ao monarca. O que chamamos hoje de bem público era então, propriedade do rei.
Naquela época, proibia-se, antes, a malversação em excesso. Se não chegava a configurar um crime de lesa-majestade, era delito passível de punição. O Livro V das Ordenações Filipinas (1603) estabeleciam que "qualquer oficial nosso ou pessoa outra que alguma coisa por nós houver de receber, guardar ou arrendar nossas rendas, se alguma das ditas coisas furtar ou maliciosamente levar", ficava condenado a perder o ofício e ressarcir o Tesouro.
Se o roubo fosse muito grande, aí sim, poderia ser tratado como simples ladrão.
Uma prova de que o Tesouro era lesado em escala maior do que a prevista encontra-se no livro A arte de Furtar, escrito em 1652. Irônico, o autor abre o livro dizendo que o furto era mesmo algo nobre, e, à moda barroca, caracteriza dezenas de fórmulas desta arte. Dos que furtam com unhas reais, agudas, militares, disfarçadas, postiças, maliciosas e descuidadas. Dos que furtam com mão de gato. Além disso, expõe os princípios gerais da dita ciência. Exemplos: como tomando pouco se rouba mais; como os maiores ladrões são os que têm por ofício livrar-nos de outros ladrões; como se podem furtar a El Rei vinte mil cruzados e demandá-lo por outros tantos.
A obra foi, por muito tempo, atribuída ao padre Antônio Vieira (1608-1697), e mais tarde ao jesuíta Manoel da Costa e a Antônio de Sousa Macedo, um dos principais diplomatas de D. João IV. Em sua primeira edição, trazia subtítulos curiosos: "Espelho de enganos", "Teatro das verdades", "Gazua geral dos reinos de Portugal"... Não foi publicada no século XVII, mas somente em 1744. Foi desses livros escritos antes do tempo.

Observação: RONALDO VAINFAS É PROFESSOR TITULAR DE HISTÓRIA DA
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE E AUTOR DE TRAIÇÃO: UM JESUÍTA A SERVIÇO DO BRASIL HOLANDÊS PROCESSADO PELA INQUISIÇÃO (COMPANHIA DAS LETRAS, 2008)
Fonte: Revista da História- Biblioteca Nacional, ano 4, nº 42, março 2009, pag.23.

GLOSSÁRIO

Peculato= é um dos tipos penais próprios de funcionário público contra a administração em geral, isto é, só pode ser praticado por servidor público, embora admita participação de terceiros. Os verbos núcleos do tipo são "apropriar ou desviar" valores, bens móveis, que o funcionário tem posse justamente em razão do cargo/função que exerce.

Apropriação= ato de apropriar ou apropriar-se.
Acomodação, adaptação.

Arrendar= dar ou tomar em arrendamento: arrendar uma propriedade.
Dar forma de renda a, rendilhar.

Donatários= constituíam-se na autoridade máxima dentro da própria capitania, tendo o compromisso de desenvolvê-la com recursos próprios, embora não fosse o seu proprietário.

Malversação= desvio de fundos no exercício de um cargo; dilapidação.


Ordenações Filipinas= são estas Ordenações que constituem a base do direito português até à elaboração dos novos códigos do século XIX, nomeadamente o Código Civil de 1847.

Jesuíta= era padre da Igreja Católica que faziam parte da Companhia de Jesus. Esta ordem religiosa foi fundada em 1534 por Inácio de Loiola. A Companhia de Jesus foi criada logo após a Reforma Protestante (século XVI), como uma forma de barrar o avanço do protestantismo no mundo. Portanto, esta ordem religiosa foi criada no contexto da Contra-Reforma Católica. Os primeiros jesuítas chegaram ao Brasil no ano de 1549, com a expedição de Tomé de Souza.



REFLETINDO SOBRE O TEXTO


1- Conceitos, posturas e atitudes podem mudar de tempos em tempos. Segundo o historiador e cientista político Raymundo Faoro, explique o que foi Estado Patrimonial:

2- Explique a frase: “Era comum a Coroa arrendar à particulares o direito de cobrar impostos, assim como o direito de explorar produtos monopolizados pelo Estado”:


3- O que era estabelecido no Livro V das Ordenações Filipinas (1603)?

4- Ironicamente, o que relatado no livro A arte de Furtar?


5- Cite alguns subtítulos encontrados nesta obra. Depois, dentro de cada um, cite um acontecimento da história do Brasil que poderia ser classificador:

6- Por muito tempo, a obra em questão foi atribuída a várias personalidades citadas no texto. Explique quem foram eles:

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